VERIFICAÇÃO DE LÍNGUA
PORTUGUESA – 4º BIMESTRE
Contar
e encantar é o objetivo de todo contador de histórias. E o encantamento pode
estar não só no que se conta, mas também na forma de contar. Alguns textos combinam,
em sua forma, poesia e prosa. E são contados em prosa poética.
“Espantalho
tão bonito e elegante nunca se tinha
Visto por
aquelas redondezas...”
Assim
começa a narrativa que você vai ler agora. Preste atenção porque, nesta
história, o jeito de contar é bastante diferente do jeito como são narrados os
contos, que você conhece.
Você
sabe o que é um espantalho?
O
dicionário diz que espantalho é um boneco em tamanho natural que, no campo,
serve para espantar aves que se alimentam das plantações.
Conheça
agora o espantalho montado por Dito Ferreira.
Ele
montou um espantalho muito diferente, um verdadeiro “espanto”.
Fiapo de trapo
Ana
Maria Machado
Espantalho tão bonito e elegante nunca
se tinha visto por aquelas redondezas. Nem por outras, que ele era mesmo
carregado de belezas. Precisava só ouvir a conversinha do Dito Ferreira
enquanto montava o espantalho, todo orgulhoso do seu trabalho:
— Nunca vi coisa igual. O patrão
caprichou de verdade. Vai botar no campo um espantalho com roupa de gente ir à
festa na cidade.
E era mesmo. Tudo roupa velha, claro,
como convém a um espantalho que se preza. Mas da melhor qualidade, roupa de se
ir à igreja em dia de procissão e reza.
Dito Ferreira mostrava todo prosa:
— Esse chapéu é de um tal de veludo. E
vejam que beleza essa camisa cor-de-rosa. Tem até coração bordado... O
patrãozinho pensou em tudo. Com uma gravata de seda, fez esse cinto estampado.
Até a palha do recheio é toda macia e cheirosa.
Não é que era mesmo, a danada? Tinha
um perfume forte, que ajudava a espantar a passarada.
Ah, porque é preciso também dizer que
aquilo tudo dava certo, funcionava tanto... O espantalho elegante era mesmo um
espanto. Passarinho nem chegava perto. E lá ficava sozinho, espetado no
milharal deserto.
O patrão ficava feliz com um defensor
tão eficiente. Dito Ferreira se alegrava com aquela figura imponente. Que
espantalho diferente! Só que eles nem sabiam que diferença era essa.
Como todo espantalho, esse não andava
nem falava, mas tinha o dom de poder sentir as coisas ao seu jeito — para um
boneco de palha, isso era um grande defeito.
E era só por causa do desenho que
tinha bordado no peito. Linhas de cor em forma de coração — e pronto, lá estava
o pobre espantalho sofrendo com a solidão! Ninguém se aproximava dele, ninguém
fazia um carinho, e ele ficava tão triste, só, espantando passarinho...
De longe via uma passarada, de todo
tipo e feição. Pintassilgo e saíra, cambaxirra e corruíra, rolinha e corrupião.
Pássaro de toda cor, de todo canto e tamanho, de todo a-e-i-o-u — sabiá, tié,
bem-te-vi, curió e nhambu. Vontade de chamar:
—Vem cá me ver, bem-te-vi! Vontade de
mostrar:
— Tico-tico, olha lá o teco-teco!
Mas não adiantava. Ninguém chegava
perto. E o tempo passava. Horas e dias, dias e semanas, semanas e meses, meses
e anos.
E o espantalho ficava no tempo. No bom
tempo e no mau tempo. No sol que queimava e na chuva que molhava. No mormaço
que fervia e no vento que zunia.
E seu cheiro se gastava, sua cor se desbotava,
sua seda desfiava, seu veludo se puía.
Até que um dia...
No tempo tem sempre um dia. Um dia em
que muda o tempo e um tempo novo se inicia.
Pois foi o que aconteceu. Houve um dia
em que choveu. Mas não foi chuva miúda, foi pra valer, de verdade, foi mesmo um
deus-nos-acuda, uma imensa tempestade, de granizo, raio, vendaval, com
aguaceiro e temporal, chuva de muito trovão que virou inundação.
Quando a chuvarada passou e o sol
voltou, um arco-íris no céu se formou. E na beleza do dia novo, azul lavado,
vieram os pássaros, em bando assanhado, ocupando todo o campo, ciscando no
milharal. Livres, soltos, à vontade, numa alegria sem igual.
Foi aí que Dito Ferreira reparou:
— Cadê o espantalho velho?
Saiu todo mundo procurando. Não
acharam. Nem podiam achar. Ele tinha desmanchado, tinha sido carregado, pelo
vento espalhado, pela chuva semeado, com a terra misturado, plantado naquele
chão, sua palha adubando muito pé de solidão.
Do que sobrou por aí, foi tudo virando
ninho, protegendo com carinho filhotes que iam nascer. Veludo em trapos, seda
em farrapos, coração bordado em fiapos, maciezas boas de se aquecer. E hoje em
dia, sua palha misturada na terra ajuda a plantação a crescer.
Os trapos de sua seda, o seu forro de
bom cheiro, farrapos de seu veludo se espalham desde o galinheiro até a mais
alta árvore que tenha um ninho barbudo.
E em cada ovo que nasce ali por aquele
lugar, cada ninhada que se achega à procura de calor, em cada vida a brotar, em
cada marca de amor, seu coração sobrevive num fiapinho de cor.
MACHADO, Ana Maria. Quem
perde ganha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.
Ana Maria Machado (Rio
de Janeiro, RJ, 1941): escreveu mais de cem livros. Em 2000, ganhou o prêmio
internacional mais importante de literatura infantil, o Hans Christian Andersen.
Seu livro Quem perde ganha traz histórias em prosa
poética, cheias de jogos e de significados.