Observe a foto a seguir.
Você lerá um texto de Rubem Braga
(1913-1990) um grande cronista e jornalista brasileiro. Tornou-se famoso como
cronista de jornais e revistas de grande circulação no país. Foi correspondente
de guerra na Itália e Embaixador do Brasil em Marrocos.
MEU
IDEAL SERIA ESCREVER…
Meu
ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está
naquela casa cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto
que chegasse a chorar e dissesse – “ai meu Deus, que história mais engraçada!”
E então a contasse para a cozinheira e telefonasse para duas ou três
amigas para contar a história; e todos a quem ela contasse rissem muito e
ficassem alegremente espantados de vê-la tão alegre. Ah, que minha história
fosse como um raio de sol, irresistivelmente louro, quente, vivo, em sua vida
de moça reclusa, enlutada, doente. Que ela mesma
ficasse admirada ouvindo o próprio riso, e depois repetisse para si própria –
“mas essa história é mesmo muito engraçada!”
Que um
casal que estivesse em casa mal-humorado, o marido bastante aborrecido com a
mulher, a mulher bastante irritada como o marido, que esse casal também fosse
atingido pela minha história. O marido a leria e começaria a rir, o que
aumentaria a irritação da mulher. Mas depois que esta, apesar de sua má
vontade, tomasse conhecimento da história, ela também risse muito, e ficassem
os dois rindo sem poder olhar um para o outro sem rir mais; e que um, ouvindo
aquele riso do outro, se lembrasse do alegre tempo, e reencontrassem os dois a
alegria perdida.
Que nas
cadeias, nos hospitais, em todas as salas de espera, a minha história chegasse
– e tão fascinante de graça, tão irresistível, tão colorida e tão pura que
todos limpassem seu coração com lágrimas de alegria; que o comissário do distrito
depois de ler minha história, mandasse soltar aqueles bêbados e também aqueles baderneiros na calçada e lhes dissesse
– “por favor, se comportem, que diabo! Eu não gosto de prender ninguém!” E que
assim todos tratassem melhor seus empregados, seus dependentes e seus
semelhantes em alegre e espontânea homenagem à minha história.
E que
ela aos poucos se espalhasse pelo mundo e fosse contada de mil maneiras, e
fosse atribuída a um persa,
na Nigéria, a um
australiano, em Dublin, a
um japonês, em Chicago – mas que em todas as línguas ela guardasse a sua
frescura, a sua pureza, o seu encanto surpreendente; e que no fundo de uma
aldeia da China, um chinês muito pobre, muito sábio e muito velho dissesse:
“Nunca ouvi uma história assim tão engraçada e tão boa em toda a minha vida;
valeu a pena ter vivido até hoje para ouvi-la; essa história não pode ter sido
inventada por nenhum homem, foi com certeza algum anjo tagarela que a contou
aos ouvidos de um santo que dormia, e que ele pensou que já estivesse morto;
sim, deve ser uma história do céu que se infiltrou por acaso até nosso conhecimento; é
divina.”
E
quando todos me perguntassem – “mas de onde é que você tirou essa história?” –
eu responderia que ela não é minha, que eu a ouvi por acaso na rua, de um
desconhecido que a contava a outro desconhecido, e que por sinal começara a
contar assim: “Ontem ouvi um sujeito contar uma história…”
E eu
esconderia completamente a humilde verdade: que eu inventei toda a minha
história em um só segundo, quando pensei na tristeza daquela moça que está
doente, que sempre está doente e sempre está de luto e sozinha naquela pequena
casa cinzenta do meu bairro.
Rubem Braga
reclusa
- que não sai de casa
enlutada - profundamente triste
comissário - autoridade policial
distrito - divisão territorial em que se exerce
autoridade administrativa, judicial, fiscal ou policial
baderneiros - quem está habituado a fazer
confusões
um persa - habitante da antiga Pérsia, atual Irã
Dublin - capital da Irlanda
infiltrou - introduziu-se lentamente
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